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  • Foto do escritorModaparamim

Sairemos melhores do que entramos?


(Arte de Dora Maar)


Nessa semana entramos em contato com vários fatos e sensações díspares na roda da vida assim como também na indústria da moda. Nenhuma novidade nessa montanha russa que vivemos há pouco mais de 4 meses. Enquanto pessoas postam festas de aniversário com teste de covid na porta ou pula pulas e convidados em espetáculos infantis, muitas outras pessoas (olha eu aqui!) ainda aguentam firme e forte o importante e necessário isolamento social.


Enquanto muitas marcas lançam digitalmente sua coleções, entre filmes, lookbooks interativos e desfiles sem platéia, outras apresentaram shows com equipes enormes, imprensa com máscara no queixo (tem coisa mais disgusting do que ver as pessoas com as máscaras mal posicionadas? argh!).


Sairemos melhores que do que entramos? Aliás, onde você entrou quando a pandemia começou? Com quantos sentimentos, memórias e planos você lidou? O que adiou, o que ressignificou? Onde se escondeu, o que mais sonhou?


Me decepcionei profundamente com a Jacquemus, marca que vinha mandando tão bem digitalmente, ao promover viagem para o sul da França e aglomeração (com um desfile de 100 convidados em um campo melancólico de trigo), ao deletar fotos dos stories, ao trabalhar de forma tão distante o tema real da sua coleção: L´Amour? As peças são lindas mas eu faço questão de perguntas: Je vous demande Simon, et l'amour pour les vies que nous pouvons encore sauver? Já a dupla já tão experiente da Dolce & Gabbana perdeu a chance de trabalhar todo o lirismo e a dor vivenciada pelos italianos. O que vimos foi falta de preparo, nada de distanciamento social e uma coleção boring.



(Jacquemus)


Mesmo com toda a minha paixão por Chanel, também me decepcionei com a coleção de Virgínia Viard que falou sobre luxo, glamour e um universo de princesas inspirado nas megalomanias de Karl Lagerfeld no Le Palace. Fico pensando se Coco, que tanto enfrentou guerras e dificuldades em sua vida como criadora, iria apelar para os excessos ou para a simplicidade de se fazer o que deve e pode ser feito em um momento difícil como esse. O vídeo com ares míticos da Dior foi lindo, né?! A inspiração nas artistas surrealistas (com ênfase na musa Dora Maar) e no caráter emancipatório de Maria Grazia foi o ponto alto para mim. Consegui sentir o glamour da alta costura por um viés democrático, lúdico e contextualizado com os nossos tempos.



(Chanel)



(Dior)


Palmas também (e mais uma vez!) para a Gucci de Alessandro Michele que lançou digitalmente a sua coleção Epilogue (finalizando uma trilogia, amo!) enaltecendo o pensamento de revirar a moda de dentro para fora ao dar voz para todos os membros de sua equipe. Ah! Vale ressaltar também a divulgação da playlist no spotify com as inspirações para as peças! "As roupas serão usadas por quem as criou”, explica Michele. “Os designers com quem, todos os dias, compartilho o torpor da criação, se tornarão os artistas de uma nova história. Eles aproveitarão a poesia que contribuíram para moldar. Eles encenarão o que imaginamos apaixonadamente. É um processo de inversão de papéis, mais uma vez.”






E entre uma postagem e outra nas redes sociais, me vejo rebatendo o comentário de uma garota que questionava o uso obrigatório de máscaras e dizia mais ou menos assim: " bla bla bla... Já que somos livres, cada um desfruta da sua liberdade como bem entender, podemos escolher."


Não consigo apreciar uma estética sem uma ética minimamente consciente. E se a sua liberdade interfere ativamente na vida dos outros, que valor ela tem nesse contexto? Por aqui, recusamos esse discurso vazio, individualista e desimplicado.


Já são mais de 600 mil mortos por COVID 19 em todo o mundo. São 80.000 mil mortos só no Brasil, esses números frios conseguem te tocar? O Covid escancarou nosso racismo estrutural, a desigualdade social e econômica, a falta de inovação e coragem para muitas pessoas e marcas se reinventarem. Infelizmente, continuamos, dia após dia, observando comportamentos bizarros, promoções vergonhosas e uma ode à manutenção de privilégios e opulências sem sentido.


Pra não terminar com ares tão pessimistas, compartilho uma poesia de Saramago que reforça o poder da memória e me faz sentir exatamente o que agora em mim pulsa:


"Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas

águas como os apelos imprecisos da memória.

Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.

Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e

firme pulsar do coração.

Agora o céu está mais perto e mudou de cor.

É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo

acorda o canto das aves.

E quando num largo espaço o barco se detém, o meu

corpo despido brilha debaixo do sol, entre o

esplendor maior que acende a superfície das águas.

Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas

da memória e o vulto subitamente anunciado do

futuro."


Renata Santiago

Fortaleza, 19 de julho de 2020

19:43



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