Mar. Substantivo e predicado. Nome próprio que fala da saudade e da sua resistência poética enquanto metalinguagem.
O primeiro mar da mudança de tom, dos sábados e domingos da infância, da textura amarela da areia que engendraram o grafite de minha letra. Da incerteza do ritmo das ondas altivas onde aprendi a comungar com a lua.
No segundo mar eu corri. Era nele onde eu boiava minhas aventuras, um alento. Com toda a melancolia do azul engolindo o amarelo no fim de tarde.
Comecei a frequentar as areias do terceiro mar em meados de 2016. Naquele ano maluco e frenético, revolucionário aqui dentro, estava construindo o pensamento da minha coleção de moda autoral intitulada "O Choro de Iracema". A realidade fluía elástica. Naquele ano descobri que não era todo mar que
pertencia. E lá, naquelas areias, entre a rua polímata da ciência e a rua da casa-poesia, construí meu cantinho. Andava de ponta a ponta, a nomear a "densitude" das pedras e os perigos do caminho.
Saudade tem nome de mar.
Águas narcísicas, sagradas e profanas, recheadas por pedras verticais,
pontes de distâncias,
(entre) nós.
O mar que limpa a dor. O mar que salga o horror.
Cada centímetro, uma sensação.
Alerta.
Para lá eu fugia, lá eu gritava, lá eu comemorava, aliviada.
Pensava em fragmentos, para lá eu jurei, esperei, não vi,
me rendi.
De lá para cá-2020, andanças, rupturas, recomeços, destruição, construção, heresia, trabalho e pão, viagem, nova era.
O cantinho se foi pelo aterramento das intervenções cirúrgicas capitalistas, velozes. Rompem o véu do tempo. Rasgam o tecido da memória e, assim, nos obrigam a desocupar territórios em patchwork, ziguezagueando reinos, habitando novas tendas. Somos forasteiros nesse mundo, clandestinos, feito às escondidas.
Brasil já rima com exílio. Como não?
Mar de idas e vindas, que leva e que trouxe
a carne santa que constrói e a
louvada que corrompe
O mar está constantemente amanhecendo...
Mar mistério que me acolhe pelo que não sei e ainda assim, confio.
Mar que me im(pele) a escrever
Ainda assim,
Mais ainda.
Será que ele também deseja e sente a falta de meu corpo
vermelho, rosa, inquieto?
A gente acha o amor é nas brechas, nas beirinhas, nas piscininhas que encontramos
de surpresa ao chegar na praia.
Em tempo de fake news, virtualização do saber, e dos afetos, a oralidade retoma seu posto soberano de escabelo, ponte entre os corpos. Aquele sabor que se pega no corpo, em experiência, de amigo em amigo, em contágio, complexo como toda paixão que é ancestral.
Não posso rejeitar nenhuma de minhas faces.
E agora, como curar as dores de nossa alma, em saudade,
sem a presença do mar?
Nós que nos contente-mos com a profundidade das miudezas
vendo a passagem da memória
num palo santo.
Fortaleza: é domingo
A chuva desfia em renda branca
prédios pedras rodeados por rochas mar
Atávica, pisco os olhos com Adélia Prado e
uma tristeza cortesã
"Ó Meu Deus, Meu Jesus, misericórdia.
Comia leite e culpa de estar
alegre quando fico.
Por prazer da tristeza eu vivo alegre".
As palavras só contam o que se sabe?
É domingo.
Eu não tomo banho de mar há 112 dias.
Renata Santiago
07 de junho de 2020
14:52
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